Vais partir! Talvez que agora nos preparativos da partida e na ânsia da chegada ao desconhecido não intentes no que tal significa para a tua vida. Só mais tarde, na hora da retrospectiva saudosa, sentirás que legaste a esta terra mais do que fortuitas amizades, deixaste uma época, uma parte da vida…
José Medeiros Ferreira, 11 de Agosto de 1960
Medeiros Ferreira tinha razão. Com a partida para Moçambique, no verão de 1960, ficavam para trás os verdes anos passados na pacata ilha de S. Miguel, no seio de uma família que já vira melhores dias, no temor a Deus e no amor à Pátria, entre um pai que queria uma filha engenheira e uma mãe que garantia, a pés juntos, que os homens não gostam de mulheres letradas. Seguiram-se três anos na cidade da Beira, então ainda na era colonial, mas onde já se anunciavam grandes mudanças, com o domínio português a ser questionado e o início da guerra em Angola. Foi também um tempo de viragem pessoal, em que verdades e valores adquiridos iam sendo irremediavelmente postos em causa. Veio depois uma Lisboa rica em acontecimentos - o curso de Economia, os movimentos estudantis, o estrebuchar da ditadura, os tempos empolgantes e conturbados da Revolução dos Cravos e do complexo processo revolucionário que se lhe seguiu.
Aqui ficam lembranças dessas décadas remotas, desse Portugal em mutação, um testemunho muito pessoal onde não faltam a irreverência e a ironia de quem olha para trás a meio século de distância.